28/12/2010

Esquecer

Quero dizer rápido:
Esquecer-me não será fácil.
Não que seja insubistituível,
Mas é que sou inesquecível.
E sou assim,
Apesar de mim.
Sou animal exótico,
Caranguejo erótico.
E sufoco e divirto quem cruza comigo.
Até a morte,
A fuga
Ou a gargalhada.

Você poderá conviver com minha ausência,
Mas isso não significa que não vá visitar você:
Quando ouvir um punk rock, vai lembrar de mim;
Quando comer palmito, vai lembrar de mim;
Quando assistir um filme, vai lembrar de mim;
Quando vir um móvel de demolição;
Quando comer bacalhau;
Quando espiar um Basquiat;
Quando se depilar;
Quando se deitar;
Quando viajar e sentir frio (lá não queria estar);
Quando avistar alguém de bicicleta;
Olhar um grafite;
For numa livraria;
Estudar sociologia;
Comprar uma casa na praia;
Souber de alguém com câncer;
Souber de alguém de câncer;
Transar com outro;
Ouvir Gonzaguinha (ou uma música francesa);
Apreciar Schiele;
Ouvir falar de Macaé;
Fizer uma tatuagem;
Quando me vir passar (ou não me vir)...
Vai lembrar de mim.
Infelizmente, será assim.
Mesmo sem querer,
Vou atormentar você.
E você terá que aguentar,
Você terá de me matar.
Porque eu não desisto não,
Não vou me entregar.
Posso até fugir,
Mas não sou de engolir.
Estarei sempre aqui,
Tentando esquecer o que não posso,
O que sei que não vou.

E quando a gente se encontrar,
Fingirei que nada mais há.
E você não verá minhas lágrimas a rolar.
Mas elas vão me alimentar,
Até ficar tão forte,
Tão grande,
Tão vivo,
Que você não deixará de me ver,
Em todo lugar.
Só pra não deixar você esquecer.
Afinal, esse é o dilema da memória:
Ela é estimulante e sufocante.
Mas vai adiante
E não olhe para trás,
Porque o passado corre atrás,
Por isso é tão difícil esquecer.
Sinto muito!
-----------------_________----------____________________________
Imagem do belo espetáculo de dança Mémoires d’Oubliettes (2009), do coreógrafo tcheco Jirí Kylián. O título do espetáculo remete à idéia de relacionar memória com esquecimento. http://www.ndt.nl/ballets/6