31/08/2010

Controle social total

Chego em casa desorientado,
Parece até que fui esmurrado.
Deito pra descansar e não consigo.
Levanto pra trabalhar e leio um livro.
Jogado no sofá,
Ouço Crass.
E penso na falta de liberdade
Que há na sociedade.
O controle é intenso
E o temor, imenso.
Eu me sinto um anarquista
Numa sociedade panoptista.
No fim do dia,
Parafraseando Marx,
Tudo vira poesia.
E que venha logo outro dia
De mais-valia.
===========================>WW
Imagem: Jean-Michel Basquiat, Untitled (1981).

30/08/2010

Gente é ingrediente


Cada comida preparada
É uma mistura danada.

E se olharmos pra cada ingrediente,
Parece unidade, imediatamente.
Mas se há qualidades de ingredientes,
Cultivados em solos diferentes,
É porque tal explicação não é suficiente.

Se há mistura é porque somos ingrediente.
E quem não se mistura,
É porque se acha pura,
Ou porque não é gente.

29/08/2010

Empregabilidade ou empregabilismo?

Algumas noções são criadas sem nenhuma noção da realidade. E, por isso, são noções, e não conceitos. A noção de empregabilidade é um desses: é a capacidade do trabalhador aperfeiçoar-se, oportunizar-se, para encontrar uma boa colocação no mercado de trabalho ou manter-se empregado. A noção sem-noção de empregabilidade coloca no trabalhador a responsabilidade por sua condição de empregado ou desempregado, como se não houvessem fatores econômicos (externos à vontade do trabalhador) provocando o desemprego. É a vítima assumindo a "culpa" pelo mal que sofreu (desemprego).
Se essa moda pega, daqui a pouco teremos noções ainda mais equivocadas como, furtabilidade, sequestrabilidade, estuprabilidade e até homicidabilidade. Como o sufixo "ismo" costuma indicar a existência de ideologias, seria melhor falar em empregabilismo, em vez de empregabilidade. E pior é que tem gente que leva a sério. Dá-lhe Marx!

28/08/2010

Códigos e sussurros

Essa é uma história (quase) real da época da ditadura. Havia uma intensa perseguição aos intelectuais e guerrilheiros naquele contexto. Era uma guerra insana, como toda guerra. O panóptico era tão enlouquecido que olhava-se constantemente sobre os ombros e comunicava-se aos sussuros ou em códigos. Qualquer um era um inimigo em potencial. Quando precisavam se comunicar, era um problema, uma piração.
Dois revolucionários se encontraram e precisavam descobrir se estavam esperando um ao outro. Afinal, receberam ordens - por um bilhete - de ir até uma instituição de ensino tratar um ataque. Lá estavam no horário combinado. Um deveria "achar a mulher-maravilha". E a tal mulher, "procurar o professor-sonhador". Mas que procura mais difícil, já que ser professor é sempre ser sonhador e mulher maravilha, só existe no gibi. Se entre-olharam e não se encontraram. Contiuaram procurando. E não queriam acreditar no que viam: eles se encontraram, mas duvidaram. Afinal, a mulher era maravilhosa demais. E ele, sonhador demais. Impossível!
Começaram a conversar para decifrar se era quem esperavam. Descobriram suas afinidades: admiravam as artes, a literatura e o cinema. Gostavam também da crítica. Conversaram tão prolongadamente que esqueceram da missão. De repente, ela lembrou do bilhete recebido e perguntou: "Gosta de poesia?" (Porque não há sonhador que resista a uma poesia). Ele disse, "gosto mas não as leio, prefiro escrevê-las".
Ela logo percebeu que encontrara quem procurava. Olhou por cima dos ombros e afastou-se em silêncio com uma expressão séria e um ar de surpresa. Tirou um caderno da bolsa, escreveu alguma coisa e rasgou um pedaço do papel. Caminhou, ainda em silêncio, em direção ao cara (que a essa altura já havia entendido tudo) e entregou o pedaço de papel dobrado. Eles se despediram com um olhar de até logo e seguiram seus próprios caminhos. Caminhando atônito em meio à multidão ele tirou o bilhete amassado do bolso, desdobrou-o cuidadosamente e, esboçando um sorriso, leu o que estava escrito: "Me segurei para não te dar um abraço!"
Descobriram que estavam do mesmo lado. Daquele dia em diante a guerra se intensificou. O que aconteceu com eles depois não interessa mais do que o que aconteceu até ali. Mas, se quiser, você pode escolher/escrever um final.
_________________
Como diria Nietzsche, a vida é feita de bons e maus encontros. Esse foi um bom encontro! Até o nosso próximo encontro!

27/08/2010

Contraditória mente

Contraditoriamente pensa pra escolher,
Mas escolhe sem pensar.
Segue o coração,
E alguma outra emoção.

Contraditoriamente vê o que deseja
E deseja o que não vê.
Sofre por querer,
Mas com medo de errar.

Contraditoriamente abraça o que quer
E quer o que não pode abraçar.
Sabe que o abraço aproxima os corações
E algumas outras emoções.

Contraditoriamente pede o que não quer
E quer o que não pede.
E arca com as consequências
Das escolhas que não fez mas queria ter feito.

Contraditoriamente consegue ser diferente
Num mar de iguais.
Mas essa diferença,
Não o difere dos demais.
Afinal, somos todos iguais!

Contraditória mente o tempo todo:
A luta da responsabilidade com a vontade.
Cotraditória mente.
Contraditória verdade.

26/08/2010

Não sou

Não sou o Cristo,
Ele é mais humano.
Não sou o Chico,
Ele é mais bonito.
Não sou o Che,
Embora quisesse ser.
Não sou o Lula,
Nem o Juca,
Nem o Elias,
Nem o Kierkegaard,
Nem o Lutero,
Nem o Botero,
Nem o Martin,
Nem o Penn,
Nem o Rainha,
Nem o Gonzaguinha,
O Sérgio,
O Zico,
O Tito,
O Afonso,
O Francisco,
O Basquiat,
O Lima,
A Elisa,
A Amélia,
A Esméria...
Não sou nenhum deles
E nenhum de tantos outros
Que poderia mencionar.
Mas trago aqui,
Misteriosamente,
Cada um deles,
E de tantos outros
Que poderia mencionar,
E que não o faço,
Por medo de falhar.
Sei quem não sou,
Quem não fui,
Nem serei.
Mas isso não me impede de sonhar.
E me vejo discursando,
Cantando,
Brigando,
Pintando,
Encenando
E ensinando.
E por culpa de cada um deles,
E graças a cada um deles,
E de tantos outros
Que poderia mencionar,
Vivo como se fosse único.
Mas sei com quantos encontros,
E tantos desencontros,
Se faz uma vida;
O quanto doeu
Pra chegar até aqui.
Onde mesmo?

25/08/2010

Castração

Ajuda-me com a censura,
A minha e a dos outros;
A repressão,
Que nem sempre é agressão;
A responsabilidade,
Que às vezes gera passividade;
O medo.
Variações do mesmo "tema!":
Castração.

24/08/2010

Imperfeição

Sua imperfeição é marcada.
Você é cheia de erros e fraquezas.
Sua imperfeição chega a ser perfeita.
Perfeita para mim.

22/08/2010

Condecorado corpo

Não pretendo cobrir meus cabelos brancos, tenho orgulho de cada um deles. Aliás, sinto-me honrado com cada dobra, com cada ruga, cada marca e mancha que carrego no corpo. São expressões do tempo. De um tempo que não volta mais. Ainda bem. Elas me fazem lembrar os limites da vida. E servem de estímulo para que eu vença os obstáculos da idade. Como não vivi dissolutamente e como não há corpo perfeito, penso que fiz o meu melhor em cada momento. E, por isso, carrego tranquilamente as marcas do tempo como condecorações dadas a um herói de guerra. Honrarias concedidas a quem lutou, e nem sempre venceu, todas as batalhas da vida. Quem se envergonha do seu corpo, se envergonha da sua vida.
_________________________
Imagem: Viejo desnudo al sol, óleo sobre tela de Marià Fortuny i Marsal (1838-1874), Museo del Prado, Madrid.

20/08/2010

Duas histórias com um mesmo final?

Havia uma mulata cujo nome era Clara. E um homem baixo que se chamava Fausto. Os sobrenomes não importam. Essa não é uma história de amor, nem de final feliz.
Clara, que era filha mais filha velha de um casal de classe média com três filhos, e nascera e crescera em Niterói/RJ, tinha tanta beleza quanto coragem. Aos 17 anos conhecera o movimento paramilitar Ação Libertadora Nacional (ALN) através de colegas da escola que frequentava. Em 1968, aos 18 anos, entrou na luta armada contra a ditadura militar, vivendo na clandestinidade e passou a ser chamada de Vivi. Nesse tempo cruzou intensamente as estradas do sudeste brasileiro, apoiando seus companheiros da ALN. Fazia um pouco de tudo com o fusca marrom do seu pai, de levar armas, cigarros e correspondências até pessoas que faziam parte da guerrilha. Foi executada um ano depois de entrar na luta armada, numa emboscada montada para matar um conhecido lider do movimento, em São Paulo. Morreu buscando a vida e deitou com um sorriso no rosto.
Ah, já ia esquecendo de falar de Fausto! Ele era sub-gerente de uma revendedora de carros e naquela mesma noite procurava um chaveiro que pudesse abrir a porta do carro de seu pai, porque distraidamente ele mesmo deixara a chave dentro do próprio veículo. Um dos tiros disparados contra Clara acertou Fausto em cheio na cabeça, a um quarteirão de distância de onde Clara fora executada. Ele ouviu vários tiros na rua de baixo e instintivamente dobrou os joelhos e virou a cabeça na direção de onde vinham os disparos. Que azar, pegou a bala de frente, na altura da sombrancelha esquerda. Morreu buscando alguém que lhe abrisse uma porta e caiu com cara de assustado.
Ambos morreram no mesmo dia e de uma mesma rajada de metralhadora. Os dois tinham 19 anos e tinham ideais, sonhos. Nenhum dos dois tinha carro próprio e nem esperava que a morte chegasse naquele dia. Só um virou herói.
Dificilmente o nosso fim expressa as dimensões da nossa vida.
.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.
Não há moral na história:  a história dos mortos é contada pelos vivos, do jeito que se quer.
¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨.¨
Vivi como se fosse Clara.
Clara que não era clara.
Já era, Vivi.

E o nefasto destino,
Derrubou Fausto
Sem nenhuma grandeza.

E no fim,
O julgamento cabe a mim.

17/08/2010

Massa

Olha essa massa homogênea,
Amassada com força e por muitas mãos (e pés).
Ela está no ponto pra ir ao fogo.
E virar algo novo.

Você não sabe o que ela pode fazer.
Ela não sabe o que faz.
O pão que nos sustenta vem dessa massa.
O medo que não se sustenta vem de cima.

O segredo dessa massa é a liga.
A liga dessa massa é o suor (e as lágrimas).
O problema dessa massa é a fôrma.
O problema pra essa massa é a força.

A fôrma limita a expansão da massa com força.
A fôrma restringe e aprisiona a massa.
Mas se a fôrma fosse outra,
A massa daria um belo pão.

Quem sabe as idéias não alimentam nossas mentes,
Quem sabe elas não se ponham em prática
E sejamos capazes de criar algo novo:
Um pão para todos!

Quem sabe sentemos à mesa juntos,
Com todas as nossas diferenças,
Com todas as nossas presunções,
Para partilhar do mesmo pão.

A milagrosa massa produzindo o milagre do pão.
O milagre do pão produzindo o milagre da vida.
E o milagre da vida compartilhada num ideal comum:
A própria vida tornada comum.
_____________________________
Tornar a vida comum não é banalizá-la, pelo contrário, é valorizá-la num olhar compreensivo e compassivo em relação ao outro, em relação à vida do outro, às escolhas do outro. É criar o espaço da comunhão, da tolerância com o diferente, é nos vermos como iguais.

16/08/2010

A bailarina

Tenho você na minha caixinha:
Todos os dias ouço tocar nossa música
E vejo você bailar.
Roda bailarina,
Roda sem cansar.
E quando sua corda acabar
Vou recomeçar.
Estou aqui pra isso:
Não me canso de admirar você.
E observo cada detalhe:
Seus quilinhos a mais,
A maquiagem demais,
Seus calos,
Seus passos errados,
Seus sapatos esgarçados,
Seu semblante engraçado,
Seus dentes embotados.
Mas tudo perfeito,
Na maior elegância,
Na maior arrogância,
Como quem não erra,
Apenas escorrega.
E limpo o chão para você cair,
Pra observar sua queda.
Ainda bem que há sensibilidade aqui:
Aplaudo cada um dos seus pequenos erros
E torço para que se multipliquem.
Senão ia achar que você não existe,
Que você é perfeita.

10/08/2010

Descarrego

Descarrego em você
Toda a minha inquietude,
Esperando de você
Uma nova atitude.

Se você não gostar,
Sinto muito e atenção:
Você não vai acreditar,
Azar o seu, irmão.
+++++++++++++++++++
Fiquem firmes!

09/08/2010

Calo

Às vezes não se tem nada a dizer.
Às vezes não se tem nada.
E quando não se tem nada,
Melhor não dizer.
Melhor lutar
Pela simples vontade de viver.
Calo pra fazer.
E esse meu calo é viver,
É lutar.
Calo pra luta.
Calo de luta.
Calo e luto.

08/08/2010

Humanizar

Nem sempre fui humano
Fui sendo adestrado,
Aprendendo a ser humano.
Imunizando a imagem.
Humanizando a carcaça.

Mas o bicho dentro de mim continua vivo,
Aprisionado,
Querendo sair,
Querendo aparecer.

Mas o universo a minha volta não pode, nem quer, conhecer o que há no meu interior.
E, pra falar a verdade, temo libertar esse danado que vive aqui,
Por não conhecer exatamente o que ele pode fazer em mim,
Embora queira muito saber o que ele poderia fazer por mim.
Mas pagar pra ver eu não vou.
E você?

O auto-controle nasce do atendimento à expectativa do outro sobre cada um de nós.
Vamos domesticando, pelo social, o animal furioso que vive em nós.
E nos especializando em acatar.
Mas ao menor descuido ele pode atacar.

Cuidado: animal feroz!

06/08/2010

Tubo vazio

Quando a pasta de dentes acaba é preciso trocar. E se não há outra, aperta-se até o final. Espremer. Exprimir. Sair. Tirar. Esvaziar. Substituir. Ninguém joga um tubo de pasta de dentes fora se não há outro para substituir. Nem você.

02/08/2010

Invisivel e atento

Estou aqui escondido,
Camuflado de mim mesmo,
Vendo você entrar,
Vendo você passar.
Querendo aparecer,
Escancarar.
A tinta das suas canetas não me faz corar.

Continuo invisível pra você.
Invisível por você.
Invisível há tempo.
Invisível e atento.
Mas trabalhando pelo dia em que se enxergará.
Vai ver.