26/03/2007

A música nos Direitos Civis americanos


A música é utilizada como meio para protestar há muito tempo. Várias músicas marcaram gerações distintas, com refrões chamando a posicionamentos políticos ou denunciando problemas sociais. Ou com estrofes inteiras de apelo à mobilização social contra determinados fenômenos sociais ou governos. Resolvemos destacar alguns dos grandes "hinos" da música de protesto que marcaram a campanha dos Direitos Civis nos Estados Unidos.
Bob Dylan lançou, em 1964, o disco "The Times They Are a-Changin'" e a canção título foi tomada como manifestação de esperança nas transformações na sociedade racista americana. Todos cantavam "os tempos estão mudando" do refrãozinho pegajoso da música. Outra música de Dylan que pode ser considerada um hino político é "Mr. Tambourine Man", ao pé da letra, algo como "senhor pandeiro" ou "homem-pandeiro", numa referência à reação de violência do governo americano contra os ativistas políticos que lutavam pelo fim do racismo no país. A música saiu no álbum "Bringing it all back home", de 1965, e logo tomou as ruas americanas.
Outra música importante no movimento dos Direitos Civis americanos foi "If I Had a Hammer", de autoria de Pete Seeger, mas que fez sucesso na voz do trio Peter, Paul e Mary, que cantou a canção para milhares de pessoas na famosa "Marcha sobre Washington por trabalho e liberdade" (foto), em que Martin Luther King fez o seu famoso discurso "Eu tenho um sonho". A música dizia que se "eu tivesse um martelo" bateria o martelo da justiça e os sinos da liberdade. Virou uma canção de protesto e tanto naquele momento histórico.
Se Pete Seeger, com sua composição lançou o trio Peter, Paul e Mary ao estrelato, "If I had a hammer" não foi a única música de Seeger que se tornou hino do movimento pelos Direitos Civis americanos. "We Shall Overcome" foi considerado o hino propriamente dito do movimento. Seeger mudou a letra de uma antiga melodia religiosa americana do início do século XX criando frases como "nós superaremos", "nós andaremos de mãos dadas", "nós viveremos em paz", nós seremos todos livres", "nós não temeremos" e "nós superaremos, um dia". Nem precisa dizer que este apelo musical caiu no gosto de uma sociedade fraturada pelo racismo e que ansiava por mudanças imediatas.
José Murilo de Carvalho vai dizer que os Direitos Civis no Brasil ainda não se consolidaram, que só agora estamos começando a discutir sobre isso. Quem sabe as músicas de protesto não poderiam dar um empurrãozinho neste processo? Exemplo para isso temos.

23/03/2007

Joe Hill na luta com os trabalhadores


Joe Hill foi um dos pioneiros da música de protesto no mundo. Joe Hill nasceu Joel Haaglund, em 1879, na Suécia. Migrou para os Estados Unidos em 1902, depois que seus pais morreram. Com seus pais, que eram muito religiosos, aprendeu a tocar alguns instrumentos, como acordeão, piano, violino e violão. Trabalhou em Nova Iorque e depois foi para Chicago. Mudou seu nome para Joe Hill depois que foi demitido e colocado na lista negra das empresas da região, taxado de "agitador", porque ele organizava os trabalhadores para lutar por seus direitos. Em 1910 uniu-se a uma instituição que lutava pelos direitos dos trabalhadores da indústria no mundo todo, a IWW (Trabalhadores Industriais do Mundo).
Foi no movimento sindical que ele começou a compor e cantar músicas de protesto contra as condições de trabalho dos operários americanos. O operariado adorava as músicas de Hill, principalmente porque se identificava nas condições de trabalho denunciados por ele. Dentre as músicas que ele compôs e cantou, destacam-se "The Rebel Girl", "The Preacher and the slave" e "Casey Jones - The Union scab". Em "The Rebel girl" ele faz uma homenagem a uma líder do movimento operário, Elisabeth Gurley Flinn, considerando-a uma mulher firme de suas convicções e chamando a atenção para a importância das mulheres para a causa operária. Em "The Preacher and the slave" ele zomba da atitude religiosa de esperar as bençãos dos céus e conclama os trabalhadores a marchar unidos pela conquista da liberdade. Ele vai chamar os trabalhadores de escravos que precisam se libertar. Finalmente, em "Casey Jones", Hill faz uma paródia sobre os acontecimentos reais que levaram à morte de Casey Jones, um engenheiro que ficou famoso após morrer num acidente de trem em que pilotava tentando chegar o mais rápido possível a seu destino final, cumprindo as ordens do "patrão". Jones trabalhara uma jornada maior do que deveria para cumprir o cronograma de viagem do trem. Segundo Hill, Jones não passava de um fura-greve, de alguém que abriu mão da luta coletiva e que acabou morrendo sozinho. Era o exemplo a não ser seguido pelos trabalhadores.
Apesar dos protestos públicos, em 1915, Hill foi executado com tiros no peito pelo Estado de Utah, num processo até hoje confuso, depois de ter sido acusado e condenado de ter assassinado o proprietário de uma loja de Salt Lake City. Mais de 5 mil pessoas compareceram ao funeral de Hill e cantaram algumas de suas músicas.
Imagine um trabalhador como Joe Hill, no início do século XX, cantando músicas de protesto em portas de fábricas, em entradas de minas de carvão, em frente ao comércio... Fez diferença.

17/03/2007

O músico, a música e a política

Considerando os problemas sociais como problemas políticos, quer dizer, como problemas cujas soluções são (e serão) políticas, queremos ressaltar o papel do músico (de sua postura e de sua música) como formador de opinião e agente político de mudanças sociais.
Todo artista, não só o músico, tem a visibilidade pública necessária para criar tumultos e resolver problemas. Nem um nem outro é pejorativo em si mesmo: pode haver a criação de desordem numa ordem social injusta, o que é muito bom; assim como pode haver solução de conflitos que seja uma negociata que esconda os conflitos, ao invés de resolvê-los. De qualquer maneira, o que quero dizer é que o artista tem esse potencial de intervenção social aumentado, dada a sua visibilidade social, a sua presença na mídia. E graças, é claro, à existência de seus "seguidores", seus fãs, que levam muito a sério o que eles dizem.
Numa juventude (para não falar uma sociedade) desagregada, sem rumos, perdida, sem ética e sem limites, o músico pode assumir um papel ativo e positivo de criação de parâmetros mínimos de envolvimento social e de descontentamento com as coisas da vida. A liderança que os músicos, ou alguns deles, exercem, ou podem exercer, sobre seus fãs é algo que não se pode desprezar. Essa liderança, se utilizada, já pode provocar algum incômodo na ordem social estabelecida, para o bem ou para o mal.
O papel do músico, e de sua música, pode ser também um papel político de encorajamento e mobilização de uma juventude acoada e apática. Uma juventude indiferente com os problemas sociais. Mas para isso, o músico precisa querer correr riscos, precisa tornar-se consciente de seu poder social e precisa ser responsável pelo uso político desse poder. O músico que quiser marcar sua geração para além da efemeridade de ter suas músicas nas paradas de sucesso por um tempo, precisa conscientizar-se dos problemas sociais em que vivemos e assumir um posicionamento político em sua ação artística. E isso é pra já.

16/03/2007

Música e protesto


A propósito do protesto público contra a violência convocado pelo vocalista da banda Detonautas, vou começar a publicar uma série de textos que tenho escrito sobre o tema da relação da música com protestos políticos e sociais.
Nesta primeira postagem, quero, antes de tudo, parabenizar a iniciativa do vocalista dos Detonautas, Tico Santa Cruz, pela iniciativa de convocar os jovens para um ato público de protesto contra a violência que nos circunda tão de perto. Ele mesmo sabe bem o que é isso. Quero também falar um pouco do papel da música e das performances musicais para tomada de posição política e manifestação de idéias políticas.
Alguns autores vão chegar a dizer que como somos seres políticos, não há nenhum ato humano que não seja também um ato político, mesmo que não tenhamos consciência disso. Penso que esse tipo de pensamento amplia demais o leque de atitudes políticas e até barateia as ações políticas. No caso da música, especificamente, não são todos os músicos que estão interessados em envolver-se nas questões sociais, que é um envolvimento político. Pelo contrário, uma minoria está disposta a tomar um posicionamento político nos palcos ou através de suas músicas. Porque correm o risco de serem tidos como "chatos", ou "oportunistas" (tentando usar os problemas sociais para aparecer na mídia ou para catapultar sua carreira) ou até correm o risco de encurtarem sua carreira como músicos, como já aconteceu antes. Assunir uma posição política pública, contra ou a favor de alguma coisa, é sempre um risco para a carreira pessoal do artista. E isso não é de hoje. Mas também não é de hoje que uma minoria de músicos assume esse risco e abre mão de pensar só em sua própria carreira para usar os microfones a fim de divulgar idéias e ideais políticos, nem sempre nobres, nem sempre de oposição.
A música, como qualquer espaço de atuação profissional é também um espaço possível de atuação política. Quando rejeitamos participar de esquemas de corrupção, ou quando nos indignamos com a perseguição sofrida (por nós ou por outros) no ambiente de trabalho, ou quando denunciamos a injustiça como contrária à ordem social democrática, e nos recusamos a participar dela, estamos tomando posicionamentos políticos. E isso pode acontecer em qualquer nicho de atuação profissional, inclusive na música. O músico protestar contra problemas sociais os mais diversos ou contra ações ou reações de pessoas "importantes", inclusive políticos, é sempre uma manifestação de não-alienação e de envolvimento social. É uma prova de que o músico está antenado nas mudanças sociais e tem pensamento próprio.
Precisamos de mais músicos engajados no conhecimento da realidade social e na tentativa de mudar esta realidade. A música transpõe barreiras econômicas, sociais e culturais, falando a sociedades divididas economicamente, racialmente, religiosamente, politicamente... Os músicos falam uma linguagem universal (a música) que pode ser um excelente instrumento de divulgação de ideais de transformação social e de mudança de atitudes individuais. Como precisamos, você e eu, de ideais de esperança de que as coisas podem melhorar! E como precisamos, você e eu, desses ícones que levantem a bandeira da indignação com as coisas que aí estão ou de uma transformação possível da vida individual e social! Cazuza cantava, "Ideologia, eu quero uma pra viver". Músicos, peguem os microfones e os instrumentos musicais e protestem!

15/03/2007

Desterritorialização


Moro numa casa com quintal. No quintal há grama esmeralda, arbustos e plantinhas floríferas: coqueirinhos, azaléias, orquídeas, hortência e outras plantinhas. Moramos aqui há pouco tempo. É a primeira vez que moro em casa. O clima da cidade é ameno. Antes morávamos num apartamento, num lugar mais quente. Mas sempre tivemos plantinhas domésticas na sala de estar.
Quando mudamos para cá trouxemos nossas plantinhas de vaso. E como havia espaço no jardim, resolvemos plantar algumas no chão. Das plantas que já existiam no jardim, deixamos algumas onde estavam, trocamos outras de lugar e algumas jogamos fora. Compramos também algumas novas plantas para o jardim. Quero falar da experiência da mudança.
Foi uma surpresa perceber que algumas plantas que estavam no vasinho morreram quando foram plantadas no chão. Outras murcharam, secaram, mas, ao fim, resistiram e já florescem. A hortência estava há anos no mesmo lugar, no meio do terreno, reinando absoluta, com raízes profundas. Achamos melhor traze-la mais para frente do quintal para valorizá-la e ao jardim. Ela também murchou, perdeu as folhas, pensamos até que havia morrido, mas está lá, firme. Só falta florir. Mas ainda não está no tempo.
Não é fácil sair de um lugar para o outro. Não é simples: sair de um território para outro é mais do que um deslocamento. É um processo de desterritorialização, uma tentativa de se enquadrar nos novos modelos culturais do lugar de destino. O brasileiro não é igual em todo lugar, nem poderia ser igual também a sua cultura. Somos uma sociedade multicultural.
Desterritorializar é perder a segurança gerada pelas raízes fincadas no solo há tanto tempo para tentar enraizar-se em outros solos. Gera medo, insegurança, angústia. Somos excluídos, perseguidos, humilhados. Como as plantinhas trocadas de lugar, murchamos, definhamos e morremos. Ou resistimos.
Milton Santos, no livro “Espaço do cidadão”, diz que “a cultura, forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e seu meio, um resultado obtido através do próprio processo de viver. (...) a cultura é o que nos dá a consciência de pertencer a um grupo, do qual é o cimento. É por isso que as migrações agridem o indivíduo, roubando-lhe parte do ser, obrigando-o a uma nova e dura adaptação em seu novo lugar. Desterritorialização é freqüentemente uma palavra para significar alienação, estranhamento, que são, também, desculturização”.
É f***!

14/03/2007

A casa é a rua


A constituição diz que "a casa é asilo inviolável do indivíduo", resguardando o direito do cidadão ser respeitado no ambiente do seu lar. É claro que "casa" aí tem um sentido genérico, podendo-se entender qualquer lugar de moradia do indivíduo: casa, apartamento, sobrado, "barraco", "cabeça de porco"... Mas e quem não tem moradia, quem não tem nem um barraco para descansar, não está protegido pela Constituição? Quem dorme nas ruas, embaixo de pontes, viadutos ou em árvores além de viver desgraçadamente ainda pode ser atacado por outrem sem que haja punição para o agressor?
A noção de "casa" nas leis brasileiras é intrinsicamente ligada a propriedade. Quem tem condições de pagar para morar está legalemente protegido no recinto de seu lar. Quem não pode arcar com uma moradia, tem de "circular". Podemos entender que o direito brasileiro considera legal (não contrário à lei) os moradores de rua e, pior, o ataque a esses moradores também. Como se já não fosse uma vergonha termos moradores de rua numa sociedade tão rica como a nossa, ainda precisamos conviver "normalmente" com agressões a essas pessoas que vivem por aí. É claro que temos outras leis que podem ser usadas para defender o direito do morador de rua, como a invocação dos próprios direitos humanos. Mas o direito à moradia, ou melhor o direito de acesso à moradia, ainda é fragil em nossa legislação e na prática social. E ficamos sem saber até que ponto a prática social impede que se criem leis que regulamentem o acesso à moradia, ou, a omissão das leis existentes legitimam a prática social de indiferença, intolerância e violência para com os moradores de rua?
Enquanto não criarmos políticas públicas adequadas para efetivação do acesso à moradia, continuaremos com grande número de moradores de rua e de "violações" a esses moradores que não tem casa, que não tem "asilo". Enquanto isso, os movimentos sociais de organização e mobilização dos sem-teto devem continuar pressionando a sociedade e o estado na luta pela efetivação do direito à moradia!

13/03/2007

Sucesso


Hoje vou apenas fazer a citação de um trecho do livro "Resistência e Submissão", do teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer. Bonhoeffer era alemão e foi preso e assassinado pelos nazistas por sua resistência ao governo de Hitler. Da prisão ele escreveu as seguintes palavras em tom indignado de crítica e até sarcasmo:
"A um mundo em que o sucesso é o parâmetro e a justificação de todas as coisas, a figura do condenado e crucificado permanece estranha e, na melhor das hipóteses, digna de compaixão. O mundo quer e deve ser vencido através do sucesso. Os atos decidem, não idéias ou opiniões. Somente o sucesso justifica injustiça havida. A culpa cicatriza no sucesso. Não faz sentido acusar o bem-sucedido de suas virtudes. Com isso se encalha no passado, enquanto o bem-sucedido vai progredindo de ação em ação, conquistando o futuro e tornando o passado irreversível. O bem-sucedido cria fatos consumados que nunca mais podem ser revogados; o que ele destrói nunca mais pode ser reconstruído; o que ele constrói adquire direito de existência ao menos na geração seguinte. Não há acusação que possa restabelecer a culpa que o bem-sucedido deixou atrás de si. Com o tempo, a acusação emudece; o sucesso fica e determina o curso da história. Os juízes da história são tristes figuras ao lado de seus protagonistas. A história passa por cima deles. Não há poder no mundo que possa ousar invocar com tamanha liberdade e naturalidade a tese de que o fim justifica os meios como a história o faz. (...) o sucesso é o bem por excelência".
Estava buscando palavras para escrever sobre o sucesso em nossos dias e me lembrei deste livro de Bonhoeffer. Acho que nem preciso escrever mais nada sobre isso.

12/03/2007

Ensinar e aprender


Ensinar é um verbo, uma ação, que pressupõe uma outra ação, e não apenas uma reação como poderia supor alguém que tomasse uma das leis básicas da física newtoniana ("toda ação corresponde a uma reação"). A ação que é necessária quando se ensina é a de aprender.
Em alguns idiomas, por exemplo, ensinar e aprender vêm da mesma raiz etimológica, como que indicando que não há ensino sem aprendizagem, e vice-versa. E mais, indicando que não há quem ensine que também não possa aprender. E não há quem aprenda que também não possa ensinar. Ensinar e aprender não são ações estanques, separadas. São ações complementares. Ensinar não é ativo e aprender, passivo, como se supunha há um tempo. Age quem ensina e age quem aprende.
Se não houver disposição para ensinar e disposição para aprender, não haverá o encontro mágico da produção de conhecimento. O conhecimento é produzido na junção destas duas ações (ensinar e aprender) que às vezes tem direções opostas e às vezes seguem na mesma direção. Mas nunca deixam de ser realizadas, sob pena de não haver produção de conhecimento. Nesta perspectiva, muitas de nossas técnicas e métodos de ensino e de nossas relações em sala de aula (por exemplo, "professor fala e aluno ouve") são improdutivas ou estão ultrapassadas.

11/03/2007

Justiça brasileira


A justiça brasileira é alvo de críticas ferrenhas de distanciamento da sociedade como um todo e proteção de certos setores da sociedade brasileira, nitidamente beneficiando as elites. Algumas dessas críticas podem ser oportunistas e outras mesmo descabidas. Podemos até ser levados a falar mal da justiça brasileira por um fator cultural, mania de falar mal das coisas, do sistema de justiça, por exemplo. Vá lá que seja. Mas estas críticas de termos criado uma justiça elitista, mesmo que seja cultural, está fundamentada em alguma coisa minimamente real. Essa crítica não é doidice de uma sociedade sempre insatisfeita, nem produzida por uma classe operária que não utiliza o sistema de justiça porque não confia nele, e que não confia no sistema de justiça porque não o utiliza, porque está distante dele.

Realmente, a cultura do favor prevalece(u) por muito tempo na administração da justiça no Brasil. A frase clássica de Getúlio Vargas (aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei) mostra esta relação paternalista da justiça brasileira com os donos do poder. Para voltar no tempo e perceber como essa crítica à justiça brasileira é historicamente estruturada e, portanto, não é descabida, Caio Prado Júnior define a justiça no Brasil colonial como "cara, morosa e complicada; inacessível mesmo à grande maioria da população". Tenho certeza que já melhorou muito em relação ao que era a justiça colonial brasileira. Mas que ainda há ranços históricos de elitismo, de apadrinhamento, de paternalismo, na justiça brasileira... Ah, isso há!

10/03/2007

Cultivo intelectual


Falamos de cultura como se fosse mesmo um conceito universal e entendido por todos de igual maneira, independente da cultura em que ele esteja inserido. Mais adequado seria falar em 'culturas', no plural, porque há muitos tipos de sentido para o termo, assim como há muitas culturas distintas.

Mas o sentido, sem dúvida, mais interessante, do ponto de vista do processo de cognição (conhecimento) e do papel político da cultura individual, é a cultura como como cultivo, como trabalho de reflexão e de apropriação da "visão de mundo" do outro. O sujeito culto antigamente era aquele que viajara o mundo, que conhecera outras culturas, que aprendera e observar e valorizar o sentido da vida de outras nações. Já não é mais. Simplesmente porque o consumismo transformou as culturas alheias também em mercadoria.

O cultivo da intelectualidade é como um lavrador que cultiva sua plantação, que planta, que rega, que poda, que limpa o terreno, que põe inseticida, que reza para que não haja intempéries (chuvas ou sol em excesso), que observa o desabrochar das flores, que espera a colheita e que, a seu tempo, colhe os frutos, ou os resultados esperados de seu trabalho e paciência. Cultivar a intelectualidade é conhecer criticamente. É duvidar dos fatos e buscar interpretações da realidade que se aproxime de uma "visão de mundo" consciente das circunstâncias, consciente de que os discursos são ideológicos e que, portanto, tendem a mascarar intenções, paixões, realidades.

Cultivar a intelectualidade é cultivar a resistência, é trabalhar arduamente para manter uma "visão de mundo" esclarecedora das situações que vivemos, mesmo (e principalmente) contrariando o discurso dominante. É trabalhoso, é cansativo, mas é necessário, para que não se sucumba ante os apelos consumistas e os discursos "convincentes" produzidos pelas mais diferentes instâncias de poder.

09/03/2007

Aborto


Ontem falei do sangramento mensal das mulheres como sinal de força, de renovação das forças. Não queria estragar o dia internacional das mulheres com aspectos negativos, mas há um sangramento feminino que não é bem vindo, que representa morte. É quando a data da menstruação atrasa e alguns dias e depois ela desce, com intensidade, levando embora o sonho da geração de outra vida. Um aborto espontâneo, natural, no início da gravidez, é mais comum do que se possa imaginar. Às vezes a mulher nem chega a tomar consciência da gravidez, acha apenas que foi uma menstruação atrasada. Mas quando se tem um resultado positivo de gravidez, qualquer sangue representa perigo. Quando é uma gravidez planejada então, ufa!
Passamos por esta experiência ontem. É difícil!
Acho que aborto, qualquer aborto, desejado ou não, em qualquer tempo de gravidez, é sempre difícil para a mulher, é uma perda.

08/03/2007

Mulher sangra


Dia internacional da mulher e quero falar de uma característica da mulher que num primeiro olhar pode parecer fraqueza, mas que á a maior razão da força delas: mulher sangra.
Tirando os aspectos médicos do sangramento mensal das mulheres, quando não há fecundação dentro do mês etc., quero falar dos aspectos simbólicos. Sangue ultimamente tem sido associado a morte, assassinatos, "banhos de sangue"... Mas sangue é vida, é sinônimo de vida, de energia.
O coração é a bomba de sangue do nosso corpo, levando o sangue aos órgãos e células que precisam dele. Quem já fez doação de sangue sabe o vigor que sentimos no dia seguinte à doação, são as células do sangue se renovando, é a geração de novas células sangüineas. Na hora da doação é aquela apatia, aquela prequiça. Ganhamos até despensa do trabalho se formos doar sangue?! Mas no dia seguinte, sai de baixo, que a gente se sente bem mais forte.
A mulher sangra todo mês. É a renovação da força da mulher. Não é doença, é saúde, é força que já vem. Os dias de sangramento são dias de dor, de preguiça, de cansaço ou de irritação. Ou tudo junto. Mas são dias de preparação para os outros dias que virão. E quem não percebe a força com que a mulher vive os outros dias do mês, mas só olha para os dias de sangue, não vê além de uma imagem distorcida da mulher. Uma mulher frágil, carente, nervosa... Mas ela tem direito de ficar assim alguns dias não? Nós homens ficamos assim quase todos os dias...
Quando a mulher sangra é sinal que vem força bruta por aí. Força para enfrentar os desafios da vida, força para lidar com os filhos, força para se relacionar com os homens. O fluxo sanguíneo mensal é a ronavação do fluxo da vida. É a força da vida feminina que está se configurando. Os homens precisavam sangrar mais, metaforicamente. Colocar pra fora as "porcarias" que carregam na alma, na mente, no coração. Sangrar é deixar esvair as forças para sentí-las de volta, gradativamente. Até sangrar de novo. E viver esse ciclo de renovação energética e simbólica. Símbolo de força.
Sangrar é o início da renovação. Precisamos, homens e mulheres, respeitar mais esse ritual feminino e aprender a lidar com ele de maneira positiva, confiante. Como quem sabe que desafios virão. E que se não fosse o sangramento mensal, sucumbiríamos, não só as mulheres como também os homens. Afinal, sem as forças delas...
Sangra Mulher! Força mulher! Sangremos todos!

07/03/2007

Briga de família


Talvez nada separe mais a família do que as festas de família. James Joyce vai mostrar um pouco isso, no conto "Os mortos", publicado no livro "Dublinenses". É muito interessante e próximo da realidade das famílias brasileiras. Vale à pena!

06/03/2007

Skate or die!

Quem era adolescente na década de 80 ou curtia andar de skate naquela época, sabe o que significa "Skate or Die!".
Gritávamos o jargão "skate or die!" antes de arriscar uma manobra ou na hora de descer a rampa (dropar). Era uma maneira de tomar coragem, de vencer um obstáculo que por um momento nos parecia intransponível, de jogar pra fora o medo gritando para o obstáculo que ele seria vencido.
Ao pé da letra, "skate or die!" significa algo como "andar de skate ou morrer!". Ou "prefiro morrer a deixar de andar de skate". Ou ainda, "andar de skate é enfrentar a morte". Parado que não se podia ficar. Ou enfrentávamos os desafios que se colocavam à frente ou não deveríamos mais andar de skate, porque andar de skate era, para nós, enfrentar desafios.
O final dos anos 70 e os anos 80 foram cheios dessas frases de efeito com o tema da morte: "Punks not dead" (algo como "uma vez punk, punk até morrer"); "Live and let die" ("Viva e deixe morrer", que foi um dos sucessos de James Bond) etc. O que se estava questionando era o limite do homem. Foram nos anos 80 que apareceram os precursores da geração experimental dos anos 90, que não tiveram medo de enfrentar e desafiar circunstâncias e limites humanos (grunge, bung jump etc.).
Falei tanto para chegar ao final e dizer que precisamos de frases prontas às vezes. Principalmente dessas frases gritadas que nos faz ter coragem para ir adiante. Porque às vezes a circunstância é mesmo desencorajadora, é difícil. Não é questão de auto-ajuda, mas de tentar encontrar forças para fazer o que é preciso ser feito, para tomar uma decisão. De ouvir umas palavras que nos encoraje, mesmo que elas venham de nós mesmos. Quem sabe gritar, "não vou deixar essa idéia morrer!"; ou "se as coisas continuarem como estão, é o fim!"; ou ainda, "vou tomar essa atitude mesmo desagradando à maioria, porque sei que é a certa"; ou simplesmente, "Senhor, me dá forças!", "socorro!", "alguém me ajude!", "é agora ou nunca!"...
Didi, esse é pra você, no seu dia. Parabéns!

02/03/2007

Anti-democracias brasileiras


Nas minhas andanças pelo Brasil tenho descoberto que as raízes anti-democráticas brasileiras são mais profundas do que talvez possamos imaginar, causando consequências graves para a estrutura social brasileira e para a auto-estima dos cidadãos brasileiros. Tenho visto todo tipo de abuso de poder e exploração do homem pelo homem: tráfico de influências, desprezo, assédios moral e sexual, humilhação, perseguição, exploração da força de trabalho.
Moro numa cidade onde alguns patrões se acham donos dos seus subordinados, como numa relação escravocrata que perdura. Os trabalhadores destes "senhores" são "proibidos" de ficar doentes, tem de voltar a trabalhar em uma semana após ter tido bebê, são vigiados por câmeras para não comer em serviço nem ficar à toa, realizam os trabalhos domésticos do patrão junto com o serviço obrigatório da empresa e não podem reclamar na justiça trabalhista por nenhuma irregularidade sofrida, sob pena de terem suas vidas desgraçadas.
Estes "senhores" (e "senhoras") se consideram e estão, de fato, acima da lei. Não há direitos para seus escravos, quer dizer, trabalhadores. Só o direito de ficar calado, para não ter suas palavras usadas contra si mesmos. A anti-democracia autoritária brasileira se alimenta da ignorância e da mão-de-obra barata para reproduzir a dificuldades que temos, como sociedade, de reconhecer os direitos do outro e de legitimar uma Justiça para todos.

01/03/2007

Ameaça de morte


Existe algo pior que a morte. A ameaça de morte. Se a morte significar dormência, a ameaça de morte significa insônia. É melhor estar morto do que viver com o terror de ser morto a qualquer momento. A ameaça de morte é mais destrutiva que a própria morte. Ela cria o medo da morte, que é pior que a própria morte. A morte até poderia ser vista como uma coisa boa, como sinônimo de descanso, mas passa a ser encarada como algo terrível. O descanso que a morte representaria se consumada, passa a tirar a paz de quem está sendo ameaçado. Vislumbrar a morte como o fim de uma jornada seria cruzar a linha final exausto e feliz, independente da posição em que se chegasse, certo de que cumpriu o seu dever. Mas aquele que é ameaçado de morte vê a sua jornada encurtada, mesmo antes da morte chegar. E pior, não por Deus, que é o dono da vida e dos destinos humanos, mas por alguém, igual a ele, que resolve ameaçá-lo de não completar sua jornada, de retirá-lo da vida.
Ameaçar de morte é matar antecipadamente. É matar nos nervos, nas emoções, na razão. É tirar a vontade de viver do sujeito ameaçado, que questiona seu tempo aqui e imagina seu fim iminente. Ameaçar de morte é descredibilizar a vida, a história pessoal. É derramar sangue sobre um pedaço de papel com muitas letras e palavras sem nexo nenhum. Ameaçar de morte é não reconhecer que essas letras e palavras tem um sentido próprio, que é a vida do sujeito e suas experiências. Pior, é confundir essas letras e palavras, retirando seu sentido. Fazendo o ameaçado acreditar que sua vida não teve sentido, que não valeu a pena vivê-la.
Estou falando da ameça de morte que se ameaça chamando pelo nome: "ei, Fulano, eu vou matar você. Eu vou acabar com sua vida!"Coisa mortal é a ameça de morte. Haja força para suportar. Haja terapia.