27/08/2011

Música de Protesto Brasileira: outro jeito de fazer política no Brasil

Ao escrever um texto sobre música brasileira posso criar em você a expectativa de conhecer mais sobre estética musical; ou identificar erros e acertos das letras e poesias dos principais artistas nacionais; ou de ler um texto histórico, ou nostálgico, sobre músicos brasileiros. Nada disso estará presente nesse artigo. O objetivo central aqui é refletir sobre a tão falada apatia política da sociedade brasileira, estabelecendo o campo artístico-cultural, particularmente o da música, como um espaço eleito pelos artistas para realização de atividade política numa sociedade em que 1) o espaço adequado para isso, o espaço público, foi constituído como um espaço para poucos e 2) o estado (com letra minúscula mesmo) foi, historicamente, o principal inibidor das atividades políticas. Pretendo demonstrar que são históricos e culturais os motivos que levaram o campo artístico-cultural brasileiro a ser também um espaço de contestação política.

Quando os músicos brasileiros resolveram contestar o autoritarismo de estado dos governos militares, usando e abusando das dubiedades nas letras, não estavam inovando tanto: as manifestações culturais e artísticas brasileiras já eram conhecidas por sua capacidade crítica em relação à própria realidade política e social do Brasil. Das poesias dos Inconfidentes ao Hip-Hop de São Paulo, passando pelos contos de Lima Barreto, pela temática social das pinturas de Portinari, pelo Samba ou o Cinema Novo, a cultura brasileira apropriou-se desde muito cedo da arena política. E essa é uma característica até bastante democrática do campo cultural brasileiro: de movimentos artístico-culturais elitizados como os dos jovens de classe média alta carioca da Bossa Nova a movimentos populares como o Funk, a denúncia social e a contestação política estiveram sempre em pauta nas produções culturais brasileiras. Mas por que será que o campo cultural brasileiro incorporou o espaço da política?

A sociedade brasileira é tida como uma sociedade politicamente apática, que não participa do processo histórico, que vê a banda passar. Essa idéia faz parte do imaginário social dos brasileiros, fazendo com que você se pergunte os motivos pelos quais nós brasileiros suportamos o que deveria ser insuportável: desigualdades sociais, corrupções, criminalidades, autoritarismos de estado...

Na virada do século XIX para o século XX o senador Aristides Lobo publicou um artigo em que dizia que os brasileiros assistiram bestializados à proclamação da República. O que o senador publicara não estava em discordância com o pensamento da época, e que se mantém vivo ainda hoje, sobre a indolência política dos brasileiros. Desde o século XIX a sociedade brasileira era analisada como uma sociedade com um baixo nível de solidariedade social, o que provocava o chamado “atraso brasileiro”. A discussão dos intelectuais visando superar o “atraso brasileiro” e constituir uma sociedade moderna encontrou diferentes explicações para o pretenso insolidarismo social, e que provocava apatia política. Entre as principais causas destacava-se o problema do longo período de escravidão, o determinismo geográfico e climático ou a genética e mistura de raças. Por fatores diferentes, para essas explicações a sociedade brasileira estava fadada ao “atraso”.

No entanto, apesar da disseminação de análises que questionavam a capacidade de mobilização política dos brasileiros, a história demonstrava a existência de movimentos contestatórios, entre os quais os movimentos insurrecionais do período monárquico (Conjuração Baiana, Sabinada, Balaiada etc.) e movimentos contestatórios do período republicano, que vão de movimentos messiânicos (Canudos e Contestado) a movimentos de lutas por direitos (Anarco-Sindicalismo, Ligas Camponesas, guerrilhas rurais e urbanas, Novo Sindicalismo etc.). Se há evidências históricas da existência de movimentos políticos de contestação da ordem, não se pode dizer que o brasileiro seja tão politicamente apático assim. Embora, de fato, os brasileiros, ainda hoje, resistam à ocupação dos espaços públicos para contestação política. Então, o que produziu esse retraimento do brasileiro em relação à arena política? E mais, se houve uma restrição da arena política como espaço de contestação, pra onde se dirigiu tal força contestatória? Que espaço ela ocupou?

Uma coisa em comum nos movimentos de contestação política no Brasil é o seu fim: quase todos foram dizimados ou reprimidos com extrema violência por parte do estado. Por parte de um estado que precisava se mostrar forte para a manutenção da ordem e, conseqüentemente, para a superação do “atraso”, o que está em consonância com o lema estampado na bandeira do Brasil. Quem observa as fotos da morte de Lampião e seus cangaceiros, ou de Antonio Conselheiro, ou sabe dos relatos da morte de Tiradentes, percebe a presença desse estado forte que pune com rigor para dar exemplo de que movimentos contestatórios não são tolerados. E aqui chego aonde pretendia, afirmar que o campo artístico-cultural foi utilizado como área de escape para o exercício de uma atividade política contestatória que não podia se realizar no espaço público. Como “para bom entendedor meia palavra basta”, a sociedade brasileira aprendeu muito cedo que a arena política foi constituída como um espaço artificial no Brasil, que nunca foi para o exercício da discordância, da democracia, mas apenas como espaço de ratificação das decisões políticas dos grupos dominantes. Quer dizer, nossa apatia política se realiza especificamente na ocupação do espaço público, o que não quer dizer que não se conteste a ordem estabelecida por outras vias, dentre os quais a música.

Quero marcar a idéia de que a música brasileira foi um dos espaços do campo artístico-cultural ocupados para o exercício da política. O que os compositores brasileiros fizeram de modo velado e inteligente durante os diferentes governos militares para contestar a ordem estabelecida não era nenhuma novidade, já fazia parte da tradição política brasileira adotar a produção cultural como campo de ação política, pra tentar fugir dos rigores do estado sancionador. O meu argumento aqui é que a excessiva presença do estado na vida da sociedade brasileira inibe a ação política no espaço público, deslocando historicamente essa ação para o campo artístico-cultural. Isso significa, na prática, um estado politicamente disciplinador/assistencialista e uma sociedade politicamente indisciplinada/carente. E esses dois aspectos se retroalimentam num ciclo vicioso, mantendo viva a apatia política.

A MPB inspirou as gerações que viveram nas décadas de 1960 e 70, alimentando a esperança na redemocratização política do país. A música de protesto pode inspirar a sociedade a encontrar sua força política de luta por direitos e auxiliar na conscientização sobre a própria realidade social. Mas só isso não basta, é preciso seguir a canção e tomar as ruas, ocupar esse espaço que deveria ser destinado também à política. Mas se essa ocupação do espaço público incomodar você, meu argumento pode estar certo: temos uma dificuldade (histórico-cultural) enorme de valorizar os movimentos contestatórios e isso mantém viva a “apatia política” e dificulta a consolidação da nossa democracia. Mas a contestação sempre estará aí, pra quem quiser ouvir.
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Imagem: Capa de um dos discos de Nara Leão. O musical Opinião (1964), com Nara Leão (depois substituída por Maria Bethânia), João do Valle e Zé Ketti foi a primeira contestação de músicos brasileiros à ditadura militar.
Artigo publicado hoje no caderno Pensar, do jornal A Gazeta, de Vitória/ES.