30/09/2010

João do Amor Divino de Sant'Anna e Jesus

Essa é uma homenagem a um pobre artista brasileiro que enfrenta todo dia a dureza da vida sem deixar cair a alegria necessária para suportar. São dezenove anos de luta com a mesma rapariga, com nove bocas de crianças para dar comida. E com a confiança de quem não pode parar de lutar, e que para isso, é preciso sempre se reinventar, João subiu ao último andar de um edifício de sete andares e ameaçou se jogar. A multidão se formou lá embaixo olhando para o alto, esperando o suicida chegar. Atendendo aos gritos ávidos pela desgraça alheia, ele pulou, fazendo a alegria dessa gente inclemente e insensível que se põe a curtir o espetáculo do fim da vida como forma de entretenimento, como fuga de suas próprias realidades esmagadas. Desce João, voa sobre essas cabeças vazias, certo de que isso é estritamente necessário para a manutenção da existência (por mais contraditório que possa parecer). Os olhos atônitos e os sorrisos nos semblantes esperam o corpo se partir em mil pedaços no encontro com o chão. Lá vem ele no silêncio característico de quem já morreuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu. Quase todos os olhos se apertam e poucos vêem o desastre final afinal. Buuuuuumm! Poeira subindo e rodando por toda parte e os olhos abertos não enxergam nada por alguns segundos. A poeira vai se dissipando e os olhos atentos procuram a mancha de sangue e os órgãos esfacelados e espalhados. Mas o sangue está nos próprios olhares. No chão, apenas um corpo deitado. Mas de repente, para a surpresa de todos, João mexe a cabeça e os dedos, se apoia sobre os braços e vai se erguendo vagarosamente esboçando um sorriso nos lábios. Ninguém acredita no que vê: ele levanta totalmente, se dobra para frente e estende o braço direito num sinal de respeito ao público, que o aplaude exaustivamente. É um vitorioso, é um profissional do suícidio cotidiano dessas classes sofridas (os pobres e os artistas) numa sociedade da técnica e da insensibilidade. João guarda pra sempre os aplausos e os gritos da multidão e recolhe com as mãos as moedas redentoras de sua condição. A existência está garantida (a dele mesmo e a de seus dependentes) por pelo menos mais um dia. Até que venha outro dia de espetáculo e drama. Agora ele mergulha de cabeça na sua arte. Agora ele tira o leite da pedra dura. E vamos à luta!
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Essa breve história é contada e cantada por Gonzaguinha na música "João do Amor Divino". Dá-lhe, poeta!