01/10/2010

De que adianta?

Estava um tanto quanto desgostoso da vida, principalmente com a velocidade exacerbada que nosso cotidiano tem assumido ultimamente (tornando a vida em sociedade extremamente díficil para as gerações mais velhas, que não conseguem acompanhar toda essa velocidade), e lembrei-me da poesia cristã do falecido músico Janires Manso, na música Coração Azul, que transcrevo abaixo:

"Já não se vê fitas coloridas pelo ar
Trazendo a esperança
Que as crianças voltaram do espaço
Que as crianças voltaram a brincar

Já não se lê lindas poesias nos jornais
Trazendo a esperança
Que os poetas voltaram do exílio
Que os poetas voltaram a sonhar

Também de que adianta fitas coloridas pelo ar
Se as pessoas não querem mais ver
Também de que adianta lindas poesias nos jornais
Se as pessoas não querem mais ler".

Vivemos num contexto de desvalorização da vida alheia. Somos levados a ter uma auto-imagem excessivamente valorizada numa sociedade em que o sucesso tornou-se o padrão de julgamento da vida: títulos, posses, conhecimentos, belezas etc. Essa auto-imagem distorcida de si mesmo e a obsessão pelo sucesso gera uma tendência a ver no outro um oponente a ser batido, um inimigo. E o pior é que aprendemos desde cedo a lógica da competição a todo custo. Mesmo que não haja objetivos para a disputa. Deixamos de agradar ao outro com medo de sermos dominados por esse sujeito. A só competição passa a ser a finalidade comum de todos. E nesse processo, vamos embrutecendo, deixando de lado a poesia, fechando os olhos para a beleza e leveza que a vida pode ter.
A solução apresentada por Janires na música para esse esfriamento que nos consome hoje é contrária à lógica da realidade em que vivemos: olhar pra cruz de Cristo como símbolo da libertação é contrário à lógica do sucesso. A cruz é a condenação, a derrota final. Mas Janires quer mostrar a transcendência da fé, encarnada na ação humana de amar a ponto de se entregar à morte em nome desse amor. Só a fé pode produzir uma ação tão radical como essa. Fé na transcendência do vivido, da existência, fé no amor para libertação do outro. O resultado é que essa fé alivia o coração e nos transforma em crianças inocentes (mas não ingênuas) e em poetas, capazes de sonhar um outro mundo possível. Segue abaixo o restante da letra:

"Olhe pra cruz de Jesus e sentirás
O amor de quem te amou demais
E deixe ele morar no seu coração azul
E seja uma criança a brincar

Olhe pra cruz de Jesus e sentirás
O amor de quem te amou demais
E deixe ele morar no seu coração azul
E seja um poeta a sonhar".

De que adianta sonhar? Só pela fé. Como diria Gonzaguinha: "fé na vida, fé no homem, fé no que virá; nós podemos tudo, nós podemos mais".
Está faltando poetas nesse mundo; está faltando inocência infantil; está faltando fé!
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Só um detalhe para as gerações mais novas. Ouso explicar o coração azul que dá nome à canção da seguinte maneira: na década de 80 havia uma propaganda de um barbeador que era da cor azul e, na propaganda, as pessoas perguntavam umas as outras se estava tudo bem. A resposta era que estava "tudo bem; tudo azul!" A idéia era de que fazer a barba com aquele barbeador tornava a vida muito boa, muito confortável: sem cortes, sem sangue, sem dor. Como Janires é um poeta inserido em seu contexto (contextualizado), provavelmente a referência tenha sido essa. A crítica dele seria à limitação da vida boa oferecida por um barbeador, apresentando o encontro com Cristo como sinônimo de verdadeira alegria, uma alegria duravel. Essa expressão "tudo azul" é encontrada também na música de mesmo nome composta por Lulu Santos. Só não sei dizer se a música veio antes da propaganda ou o contrário.