13/12/2010

Sobre quebra-quebra de ônibus e cultura política brasileira

Na semana passada a imprensa divulgou amplamente notícias de violências de grupos da sociedade brasileira contra o poder público. O caso mais grave, sem dúvida, foi o da ocupação do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, o que justificaria um artigo só para tratar daquela questão. Mas no artigo de hoje pretendo refletir especificamente sobre o problema do quebra-quebra de ônibus na Grande Vitória relacionando-o à cultura política brasileira. Para isso, vou argumentar que a destruição de ônibus é legítima, embora não seja desejável.
Levando-se em consideração o problema do protagonismo político da sociedade brasileira, que é tradicionalmente vista como uma sociedade politicamente apática – que não participa efetivamente da arena política e não luta por seus direitos – é preciso considerar que destruir o patrimônio público, como foi feito pelos manifestantes semana passada, não é exatamente um sinal de apatia ou comodismo. Seria mais cômodo para esses brasileiros ficar em casa esperando que a solução do seu problema de transporte e de renda – já que seu orçamento mensal estará comprometido por suas faltas e seus atrasos ao trabalho – viesse de cima para baixo – do estado, dos patrões, do judiciário ou mesmo de Deus. Convenhamos, poucos se disporiam a tomar as ruas e promover cenas de enfrentamento com a polícia e destruição de patrimônio público, expondo-se à violência policial, aos olhares atentos dos jornalistas e cliques rápidos de repórteres fotográficos, senão para lutar por um bem que se considerasse maior: a subsistência própria e familiar. Digo isso para desarmar desde já olhares preconceituosos e criminalizantes sobre o quebra-quebra realizado na semana passada.
A história brasileira está cheia de exemplos de movimentos sociais contestatórios, desde os mais pacíficos aos mais violentos, e todos com um engajamento inquestionável de grupos da sociedade militando pela resistência política e transformação social. Outra coisa que há em comum entre esses movimentos sociais é que, com raras exceções, todos eles foram sufocados ou dissipados pelo aparato de violência estatal – a violência permitida –, seja em nível municipal, estadual e/ou federal. Do movimento elitista conhecido como Inconfidência Mineira ao maior movimento popular do Brasil hoje, o MST, passando por movimentos messiânicos como Canudos e Contestado e movimentos populares ainda pouco conhecidos como o dos atingidos por barragens e o dos seringueiros e outros habitantes de florestas, entre outros tantos, os movimentos sociais no Brasil sempre foram vistos como uma ameaça à ordem.
Entre nós a democracia é historicamente identificada com bagunça, confusão ou desordem, em suma, como negação da ordem. De uma ordem que está no lema de nossa bandeira – porque inscrita antes em nossa cultura política – e que precisa ser mantida a qualquer custo, justificando inclusive a existência de um estado fortemente aparelhado para garanti-la para a obtenção do conseqüente progresso. Entre nós há uma crença de que da ordem advirá o progresso. O que significa a contrario sensu, que não haveria possibilidade de experimentar o tal progresso a partir da democracia, já que para nós ela carece da disciplina necessária para realização do diálogo.
Entendo democracia – a partir de uma abordagem sociológica – como espaço social que tende a valorizar conflitos e dissensos como importante patamar inicial para construção de pactos sociais mínimos de existência (ou constituição) da própria idéia de sociedade como coletividade. Quer dizer, sem conflitos não há democracia; toda relação entre iguais – e os cidadãos são os iguais, os sujeitos de direito de uma sociedade – é, necessariamente, uma relação conflituosa. E isso não é ruim, pelo contrário, nos faz engendrar formas de administrar nossos dissensos para construção de consensos.
Voltando ao problema do quebra-quebra de ônibus – e atenção que estou considerando isso um problema – para deixar mais claro meu argumento nessa reflexão, a destruição do patrimônio público pode ser lida como um grito desesperado de uma sociedade que não encontra espaços sociais disponíveis para manifestação direta de suas insatisfações. Não temos espaços sociais democráticos que absorvam as demandas sociais de alguns grupos da sociedade para constituição de consensos. Isso faz com que toda vez que grupos sociais menos prestigiosos da sociedade – populações marginalizadas e/ou residentes em periferias urbanas ou espaços rurais – precisem chamar a atenção para a necessidade de dialogar sobre suas próprias condições, o façam de forma violenta. Na verdade não é uma violência intrínseca a esses grupos sociais – como alguns pretendem sugerir –, mas uma violência “natural” ou lógica de uma sociedade que não consegue – ou não quer – construir canais de comunicação para compreensão dos problemas vividos pelos grupos sociais periféricos e incorporação desses grupos sociais na arena democrática.
Quero, então, chamar a atenção para a ausência de espaços democráticos de contestação na sociedade brasileira, o que dificulta a sociedade de contestar de forma direta, devendo fazê-lo, sempre que preciso, de forma mediada ou indireta, via judiciário, Ministério Público, políticos, enfim, por aqueles que já detêm o poder numa sociedade tão desigual como a nossa. Essa atuação política mediada, tutelada, da sociedade brasileira é, por um lado, uma forma de cooptação das bandeiras de lutas sociais para dentro da burocracia estatal, sufocando a legitimidade dos movimentos sociais, e, por outro lado, de reprodução/manutenção dos lugares sociais de poder, mantendo a hierarquia que caracteriza a nossa sociedade.
Se o discurso da necessidade do acirramento da repressão estatal aos grupos sociais que promovem manifestações políticas violentas aparece como dominante na mídia, apoiado pelas classes médias e altas, isso se deve muito mais à nossa incapacidade de reconhecer os problemas sociais pelas quais passam essas pessoas que parecem tão distantes de nós. Embora estejam cotidianamente a nosso lado – como empregadas domésticas, pedreiros, faxineiras, babás, atendentes etc. – esses brasileiros sofrem duplo problema: são vistos como cidadãos de terceira classe e não dispõem de instrumentos adequados para manifestação de seus próprios interesses. O resultado é o aparecimento do discurso fácil da criminalização dos movimentos sociais e da pobreza como forma de contenção de uma violência cujas causas não estão nas classes tidas como violentas, mas na própria estrutura social desigual em que vivemos.
A violência produzida por grupos sociais menos abastados, destruindo patrimônio público, deve ser vista como uma reação legítima dos que não se vêem como iguais, mas como sub-cidadãos, que percebem que a democracia não se realiza em nossa prática social e que o poder público privilegia algumas classes em detrimento de outras. A ausência do poder público na vida dessas pessoas – e o transporte coletivo é uma das poucas manifestações do poder público em suas vidas – produz a reação violenta assistida na semana passada. E se essa violência é uma reação, isso significa que enquanto não mudarmos as formas de reconhecimento dos problemas vividos por esses grupos sociais subalternizados, provavelmente veremos ainda outras tantas cenas legítimas, embora não desejáveis, de quebra-quebra de patrimônios públicos. Esse problema é nosso!
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